CB1, MOR e o futuro do tratamento da dor

Os Sistemas Endocanabinoide e Opioide estão entre os mais estudados da neurociência moderna devido ao seu papel central no controle da dor. A hipótese de que esses sistemas poderiam atuar em sinergia, potencializando o efeito analgésico e reduzindo a necessidade de opioides, tem alimentado décadas de pesquisas. No entanto, novos estudos indicam que a relação entre os receptores CB1 (canabinoide tipo 1) e MOR (μ-opioide) é mais complexa do que se imaginava, e que os efeitos combinados observados em modelos experimentais não resultam de uma interação direta.

Um estudo de 2025 publicado na revista científica Neuropsychopharmacology trouxe evidências detalhadas sobre como esses receptores se distribuem e interagem nos circuitos cerebrais, questionando parte do entusiasmo em torno da chamada “superanalgesia” canabinoide-opioide. Neste texto, vamos explorar os resultados divulgados no artigo Cannabinoid CB1 receptor and mu-opioid receptor interaction: new insights from conditional knockout mice.

O Sistema Opioide Endógeno

O Sistema Opioide Endógeno é um dos principais moduladores da dor, do humor e da resposta ao estresse no corpo humano. Ele é composto por peptídeos opioides produzidos naturalmente, como endorfinas, encefalinas e dinorfinas, e por receptores específicos localizados em regiões cerebrais e periféricas.

Esses receptores são divididos em três tipos principais:

  • μ (mu ou MOR): responsável pela analgesia e sensação de recompensa.
  • δ (delta ou DOR): modula o humor e o comportamento emocional.
  • κ (kappa ou KOR): regula o estresse e a aversão.

Quando ativado, o sistema reduz a transmissão de sinais dolorosos e induz uma sensação de bem-estar. Os opioides sintéticos, como morfina e oxicodona, atuam imitando esse sistema, mas com maior potência e risco de dependência.

Pesquisas atuais mostram que o Sistema Endocanabinoide interage com o opioide de forma complementar, modulando circuitos semelhantes de dor e recompensa, um dos temas centrais nas investigações sobre CB1 e MOR e seu papel no manejo da dor crônica.

O Sistema Endocanabinoide

O Sistema Endocanabinoide (SEC) é uma rede biológica complexa responsável por manter o equilíbrio interno do organismo, conhecido como homeostase. Ele atua em funções essenciais como dor, humor, sono, apetite, imunidade e metabolismo energético.

Esse sistema é composto por três elementos principais:

  • Endocanabinoides: moléculas produzidas naturalmente pelo corpo, como anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG).
  • Receptores canabinoides: especialmente CB1, encontrado em abundância no Sistema Nervoso Central, e CB2, predominante em células imunológicas e tecidos periféricos.
  • Enzimas metabólicas: responsáveis pela síntese e degradação dos endocanabinoides, como FAAH e MAGL.

Quando ativado, o SEC regula a comunicação entre neurônios e células imunes, modulando respostas inflamatórias, percepção da dor e funções cognitivas. Os fitocanabinoides presentes na planta Cannabis sativa, como o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC), interagem com esses receptores e enzimas, reproduzindo ou modulando os efeitos fisiológicos do sistema endógeno.

Pesquisas recentes demonstram que o SEC é um importante alvo terapêutico para diversas condições clínicas, incluindo dor crônica, distúrbios neuropsiquiátricos, inflamações e doenças metabólicas.

Mapeamento cerebral: o que a neuroanatomia revela sobre CB1 e MOR

Utilizando técnicas de hibridização in situ por RNAscope, o estudo mapeou a expressão dos receptores CB1 e MOR em populações neuronais de camundongos. Os resultados mostraram que o CB1 predomina no córtex e no hipocampo, enquanto o MOR se concentra em regiões talâmicas, especialmente no núcleo paraventricular do tálamo (PVT).

A coexpressão significativa de ambos foi observada apenas em cerca de 50% dos neurônios glutamatérgicos Vglut2+ do PVT, mas permaneceu mínima – entre 5% e 25% – em áreas clássicas do processamento da dor e recompensa, como substância cinzenta periaquedutal (PAG), núcleo accumbens (NAc), área tegmentar ventral (VTA) e substância negra reticulada (SNr).

Esses achados sugerem que, embora compartilhem funções relacionadas à modulação da dor, os receptores CB1 e MOR operam majoritariamente em circuitos distintos, o que limita a possibilidade de uma sinergia direta entre eles.

Estudos genéticos: quando a teoria encontra o teste

Para investigar se a presença de ambos os receptores em um mesmo circuito era essencial para o efeito analgésico, os pesquisadores desenvolveram modelos de knockout condicional (MOR-flox e CB1R-flox), removendo seletivamente cada receptor em populações neuronais específicas. Foram analisadas linhagens como Vglut2-MOR-KO, Vgat-MOR-KO e Vgat-CB1-KO.

Os testes comportamentais, incluindo placa quente, rotarod, catalepsia e hipotermia, mostraram que a ausência seletiva de CB1 ou MOR não alterou significativamente os efeitos clássicos induzidos por Δ⁹-THC ou oxicodona. Em outras palavras, a deleção de um dos receptores não comprometeu o efeito analgésico do outro, o que reforça a ideia de que atuam de forma paralela e independente.

Essas observações desafiam a noção de uma interação direta entre os sistemas e indicam que o suposto sinergismo canabinoide-opioide é, na prática, resultado de efeitos aditivos em circuitos distintos, e não de um mecanismo molecular compartilhado.

Sinergia revisitada: a força está nos circuitos, não nas moléculas

Durante anos, acreditou-se que os efeitos combinados de canabinoides e opioides derivavam da formação de heterodímeros CB1-MOR, complexos moleculares capazes de amplificar a sinalização neuronal. No entanto, este estudo demonstra que essa formação é improvável. A melhora observada em modelos animais decorre da ativação simultânea de vias distintas, que convergem no resultado comportamental de alívio da dor, mas não compartilham o mesmo mecanismo intracelular.

Assim, o chamado opioid-sparing effect dos canabinoides não é uma “potencialização”, e sim um fenômeno de diversificação de circuitos: ao recrutar caminhos diferentes, os canabinoides permitem reduzir doses de opioides sem perder eficácia, o que tem relevância clínica na tentativa de conter a crise de dependência e overdose.

Próximos passos da pesquisa

Apesar dos avanços metodológicos, o estudo apresenta limitações importantes. O foco nas populações Vgat e Vglut2-Cre exclui subtipos neuronais relevantes, como Vglut1 e Vglut3, que podem desempenhar papéis complementares. Além disso, deleções genéticas precoces podem induzir mecanismos compensatórios durante o desenvolvimento, dificultando a interpretação direta dos resultados.

Outros receptores, como Delta, Kappa e CB2, também não foram analisados, o que restringe a compreensão completa da heteromerização entre Sistemas Opioide e Endocanabinoide. Ainda assim, o estudo contribui para um novo paradigma: compreender a analgesia não como um fenômeno molecular isolado, mas como um processo em rede, dependente da integração entre múltiplos circuitos neurais.

CB1, MOR e o futuro da analgesia personalizada

Essas descobertas ajudam a redefinir o caminho da pesquisa em tratamento da dor crônica, sugerindo que a eficácia clínica de terapias combinadas com canabinoides e opioides dependerá menos da dosagem e mais do perfil neuroanatômico e genético do paciente.

A medicina de precisão aplicada à dor, baseada em mapeamento de circuitos e expressão receptorial, pode ser o próximo passo para reduzir riscos de dependência, personalizar protocolos e promover terapias mais seguras.

A compreensão da interação entre CB1 e MOR, ainda que mais independente do que se supunha, representa um avanço significativo na busca por terapias analgésicas eficazes e sustentáveis.

Leia o estudo completo aqui

Cannabinoid CB1 receptor and mu-opioid receptor interaction: new insights from conditional knockout mice

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